Um dia.
Outro dia.
E outro.
E outro.
Os dias passavam iguais.
E aquela janela pequena, com cortinas brancas de renda, que
já eram cinzentas, com um pequeno canteiro de ferro forjado e enferrujado,
tinha ervas secas.
Por detrás da vidraça meia tapada, meia destapada, aquela
senhora, de carrapito ralo, via a rua passar.
De manhã, bem cedo, a paragem de autocarro ficava cheia de
homens e mulheres – que nem se olhavam – ensonados, cansados já com algumas
horas de tarefas.
Passavam, olhavam, não
sorriam e… seguiam.
Um pouco mais tarde, passavam as crianças – sem batas
brancas – com as mochilas às costas, saltando as pedras do passeio.
Passavam, olhavam, sorriam, diziam adeus. e… seguiam.
Logo a seguir, apareciam algumas senhoras – já idosas – que iam
às compras diárias. Já não se ouviam as varinas, nem os moços-merceeiros que
andavam de porta em porta, fazendo o rol de cada casa. As senhoras iam ligeiras
e voltavam cansadas, com sacos cheios de pouca coisa – a reforma é pequena e só
se compra o essencial.
Passavam, olhavam, sorriam, e… seguiam
Mais tarde apareciam os homens reformados a caminho do
jardim. Levavam um saquinho com migalhas de pão para darem aos pombos ou aos
patos. Iam à procura do sol, porque o sangue já corre frio.
O polícia de ronda, todos os dias olhava carinhosamente para
a janela e fazia a continência. Passava, olhava, sorria e…cumprimentava.
E a velha senhora de carrapito ralo continuava na janela, acertando
o seu relógio pela passagem dos outros que enchiam a rua.
Numa manhã nublada e fria a janela não se abriu.
Os homens e mulheres ensonados entreolharam-se e seguiram
calados.
As crianças – sem batas brancas – entristeceram-se porque
não puderam dizer adeus.
As senhoras idosas repararam na janela fechada, pararam,
franziram a cara e benzeram-se.
Os homens reformados olharam para a janela, reflectiram um
pouco e…foram até ao jardim.
O polícia de ronda passou pela janela de cortinas fechadas,
parou, pensou e… entrou na escada do prédio.
Duas horas depois o 112 chegou.
A senhora que via passar a rua à sua janela, entrou na sua própria
rua e, pela última vez, atravessou-a em direcção a uma nuvem que passava lá no alto do céu
nublado.
A solidão, aos poucos, foi mirrando aquela vida.
A rua está mais pobre.
As cortinas daquela janela pequena, com um canteiro de ferro
forjado e enferrujado, continuaram para sempre caídas.