segunda-feira, abril 29, 2013

A janela da rua


Um dia.
Outro dia.

E outro.

E outro.

Os dias passavam iguais.

E aquela janela pequena, com cortinas brancas de renda, que já eram cinzentas, com um pequeno canteiro de ferro forjado e enferrujado, tinha ervas secas.

Por detrás da vidraça meia tapada, meia destapada, aquela senhora, de carrapito ralo, via a rua passar.

De manhã, bem cedo, a paragem de autocarro ficava cheia de homens e mulheres – que nem se olhavam – ensonados, cansados já com algumas horas de tarefas.

 Passavam, olhavam, não sorriam e…  seguiam.

Um pouco mais tarde, passavam as crianças – sem batas brancas – com as mochilas às costas, saltando as pedras do passeio.

Passavam, olhavam, sorriam, diziam adeus. e…  seguiam.

Logo a seguir, apareciam algumas senhoras – já idosas – que iam às compras diárias. Já não se ouviam as varinas, nem os moços-merceeiros que andavam de porta em porta, fazendo o rol de cada casa. As senhoras iam ligeiras e voltavam cansadas, com sacos cheios de pouca coisa – a reforma é pequena e só se compra o essencial.

Passavam, olhavam, sorriam, e…  seguiam

Mais tarde apareciam os homens reformados a caminho do jardim. Levavam um saquinho com migalhas de pão para darem aos pombos ou aos patos. Iam à procura do sol, porque o sangue já corre frio.

O polícia de ronda, todos os dias olhava carinhosamente para a janela e fazia a continência. Passava, olhava, sorria e…cumprimentava.

E a velha senhora de carrapito ralo continuava na janela, acertando o seu relógio pela passagem dos outros que enchiam a rua.

Numa manhã nublada e fria a janela não se abriu.

Os homens e mulheres ensonados entreolharam-se e seguiram calados.

As crianças – sem batas brancas – entristeceram-se porque não puderam dizer adeus.

As senhoras idosas repararam na janela fechada, pararam, franziram a cara e benzeram-se.

Os homens reformados olharam para a janela, reflectiram um pouco e…foram até ao jardim.

O polícia de ronda passou pela janela de cortinas fechadas, parou, pensou e… entrou na escada do prédio.

Duas horas depois o 112 chegou.

A senhora que via passar a rua à sua janela, entrou na sua própria rua e, pela última vez, atravessou-a em direcção  a uma nuvem que passava lá no alto do céu nublado.

A solidão, aos poucos, foi mirrando aquela vida.

A rua está mais pobre.

As cortinas daquela janela pequena, com um canteiro de ferro forjado e enferrujado, continuaram para sempre caídas.

2 Comments:

Blogger Júlia Pacheco said...

Amiga, adorei!
Foi um ciclo que se fechou, uma solidão que se evaporou, mais um idoso que deixou o número dos vivos...e a vida continua! Muito bonito, muito poético, muito infelizmente real.
A inspiração esteve cá e de que maneira!

18:17  
Blogger Cigana do Mar said...

Tá lindo
Quem nasce com talento é assim

22:13  

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