domingo, novembro 28, 2010

Fome

Eram duas pessoas. Andavam de mãos dadas. Uma muito idosa, como idosos eram os mais velhos da década de 50 do século passado. Vestida de preto, alparcatas sem meias, roupa velha e pouca, carrapito escasso feito de um pequeno tufo de cabelos pouco brancos. Puxava uma criança descalça, magra, atrofiada, de olhos grandes e pretos e estômago sempre vazio. Era a neta. Ambas subiam e batiam às portas de alguns prédios que haviam nas redondezas. A resposta do "Quem é?" era sempre a mesma: "a probezinha do costume". Umas vezes recebia comida, outras algum alimento, outras batiam-lhe com a porta na cara. E, as duas, lá desciam as escadas, procurando outro prédio. Certo dia vi a pequenita - lembro-me bem - junto de um caixote de lixo, vasculhando-o. As sua mãozitas estavam cheias de cascas de ameijoas. Quando encontrava alguna cheia comia-a ávidamente. Parei. Olhei para ela. Ela olhou-me nos olhos, sorriu e continuou. A fome chamava-a mais alto. Quando vejo alguma criança pedindo, lembro-me das ameijoas. E dou-lhe o que me pedir para comer.
A vida é injusta: uns com tanto e outros com cascas de ameijoas.
Bons sonhos!

1 Comments:

Blogger Júlia Pacheco said...

Que bonito e que oportuno neste momento em que a pobreza cresce a um ritmo assustador. Adorei, muito bem escrito com o coração. Custa sentir o fosso a crescer entre os que tudo têm e os que comem cascas de ameijoas...

22:39  

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